Londres. Quase meia-noite. Uma mulher com cabelos muito loiros, presos em um coque, encarando dois meninos com os rostos sujos, como se há muito
não tomassem um banho.
A mulher era eu. E os dois meninos me encaravam com uma
expressão engraçada: qualquer coisa entre choque, medo e desespero. Era como se
o segredo mais sujo que dois garotos podem guardar – não
que houvesse possibilidade de isso ser algo de fato tão sórdido – tivesse sido descoberto. Um dos garotos, com a boca
semiaberta, parecia estar em um conflito interno tão gigantesco que todas as
suas capacidades cognitivas foram-se embora; e ele simplesmente ficou paralisado.
O outro, um pouco mais velho, mostrava-se espantado: comigo, com minha
aproximação, e, principalmente, com a pergunta.
– Vamos, garotos! – bradei, em tom de bronca – Eu não tenho a noite toda! Esta é
a casa de Phillip Mason?
Eles
se encolheram um pouco, como se não esperassem que alguém com a aparência
delicada pudesse gritar tão rudemente. O menino ruivo se levantou de súbito da
calçada e encarou-me nos olhos.
– Phillip Mason? – disse-me, de um jeito meio acanhado – Quem é Phillip Mason,
senhora?
O
garoto tinha um tom inocente na voz; e um jeito de falar gentil, calmo e
sereno. Mas eu sabia reconhecer quando uma pessoa estava mentindo. Encarei-o de
perto, e seus olhos se arregalaram quando me aproximei com uma expressão de
nojo. O outro menino também se levantou, numa tentativa de intimidar-me, para
que eu não tentasse nada contra seu amigo. Mas eu não os temia; porque ainda
que tentassem parecer assustadores, jamais deixariam de ser meros pobrezinhos assustados.
Eu não sentia pena.
– Por que mente para mim, rapazinho? – perguntei.
– Não minto, senhora! – insistiu destemidamente – Só estamos aqui porque...
As
palavras do menino foram interrompidas quando, de repente, todas as luzes da
mansão às suas costas se acenderam subitamente. Desviei os olhos dele por um
breve instante e depois voltei a encará-lo.
– Estarei de volta aqui antes que você possa contar até dois – depois apontei o
dedo em seu rosto – Não se mova. Quero que continue aí sentado até que eu volte – eu me virei para o outro garoto, que não dissera uma palavra – O mesmo vale
para você.
Eles
prenderam o fôlego juntos, sentindo a acidez da ameaça implícita que eu lhes lancei.
Caminhei
depressa, deixando a mala ali mesmo na rua. O salto alto cadenciava minha
aproximação como em um compasso binário d’uma partitura de piano. Quando cheguei
à porta da frente, percebi que não estava fechada. E duas coisas vinham de
dentro da casa: uma claridade que emanava do fim do corredor largo, porém curto
do hall de entrada, e o som de duas vozes que eu conhecia muito bem.
Empurrei
a maçaneta devagar, aumentando o vão para que eu conseguisse passar sem fazer
barulho. Mas a porta de madeira maciça era pesada; e um leve ruído foi
inevitável. Fiquei imóvel por quase cinco segundos, com a audição tão aguçada
que eu sentia como se pudesse ouvir o som de uma agulha caindo sobre o carpete.
As vozes, porém, continuaram sua conversa. E
eu entrei tomando o cuidado de andar na ponta dos pés, para não fazer barulho
com o salto do sapato. Mas eu sabia que, na ponta dos pés ou não, o enorme
carpete que se estendia por todo o cômodo abafaria qualquer barulho causado
pela minha aproximação. Parei no canto do corredor, observando os dois homens
na sala de estar, de uma maneira que eles não conseguiriam notar minha presença.
– Então porque teve
que se esconder? – dizia Vicent, tremendo a arma na mão direita.
– Eu tive medo,
Vicent! Tive medo de você! – o outro respondia, com a voz estranha de quem sabe
que vai morrer; estranho fato sobre as pessoas que eu já constatara
anteriormente.
– E porque teria medo
se não fosse culpado? – indagou o irmão.
A pergunta me causou um
sorriso. Vicent, meu Vicent, tão manipulável. Tão fraco.
Ele prosseguiu com uma
conversa quase tão monótona quanto todas aquelas que me obrigou a ouvir durante
meses, enquanto definhava sob sua vontade de vingar-se. Até o dia em que
finalmente se achou possuidor da solução de todos os problemas: matar o irmão,
que matou o próprio pai. E sentiu-se tão astuto por meramente juntar as poucas
e simples peças do quebra-cabeça que eu cheguei a ter vontade de debochar de
sua infantilidade.
E, enquanto eu vagava para
um passado não muito distante encostada na parede do hall, perdi o “Grand Finale” de toda aquela cena
dramática que acontecia a poucos metros de distância. Acordando-me dos meus
devaneios, o som de um tiro repercutindo pelas paredes e ecoando nos cômodos
enormes e vazios de uma casa que já não tinha mais dono. Esquecendo-me de toda
a precaução, esgueirei-me para a sala de estar, a tempo de ver Phillip tombar
sobre o chão com um baque abafado. Com a respiração ofegante, voltei a me
esconder.
O silêncio que se seguiu
foi brutal e esmagador. Durante o breve espaço de tempo em que a morte veio,
pairou sobre aquela casa, e se foi levando mais uma alma para sua coleção; o
mundo pareceu desprovido de sonoridade.
O barulho da arma caindo
no chão marcou o momento em que a morte foi-se embora. E então, sem poder conter
a curiosidade, espiei com cuidado o que estava acontecendo. “O que esse idiota pensa que está fazendo?”,
foi o que me ocorreu, quando vi Vicent se aproximar do corpo do irmão que
acabara de assassinar. E então eu percebi, com uma lufada gélida de algum tipo
de vento atingindo-me diretamente no estomago, que tudo estava perdido.
Em meio segundo, todos os
meus planos foram desfeitos. A outra metade dele, gastei refazendo-os. E enquanto
Vicent lia a carta que eu escrevi para Phillip, me aproximei sorrateiramente e
peguei a arma que ele deixara caída no chão às suas costas.
A boca seca. As mãos
suando. O dedo no gatilho. O momento que eu vinha adiando, mesmo que sem
entender meus motivos, tinha chegado.
E o meu pensamento foi: “Dois assassinatos em uma mesma família, em uma mesma
casa, em uma mesma noite. Irônico.”
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