quinta-feira, 8 de novembro de 2012

O crime de Vicent Nicholls - Capítulo XVI


Londres. Quase meia-noite. Uma mulher com cabelos muito loiros, presos em um coque, encarando dois meninos com os rostos sujos, como se há muito não tomassem um banho.
A mulher era eu. E os dois meninos me encaravam com uma expressão engraçada: qualquer coisa entre choque, medo e desespero. Era como se o segredo mais sujo que dois garotos podem guardar não que houvesse possibilidade de isso ser algo de fato tão sórdido tivesse sido descoberto. Um dos garotos, com a boca semiaberta, parecia estar em um conflito interno tão gigantesco que todas as suas capacidades cognitivas foram-se embora; e ele simplesmente ficou paralisado. O outro, um pouco mais velho, mostrava-se espantado: comigo, com minha aproximação, e, principalmente, com a pergunta.
 Vamos, garotos!  bradei, em tom de bronca  Eu não tenho a noite toda! Esta é a casa de Phillip Mason?
Eles se encolheram um pouco, como se não esperassem que alguém com a aparência delicada pudesse gritar tão rudemente. O menino ruivo se levantou de súbito da calçada e encarou-me nos olhos.
 Phillip Mason? – disse-me, de um jeito meio acanhado  Quem é Phillip Mason, senhora?
O garoto tinha um tom inocente na voz; e um jeito de falar gentil, calmo e sereno. Mas eu sabia reconhecer quando uma pessoa estava mentindo. Encarei-o de perto, e seus olhos se arregalaram quando me aproximei com uma expressão de nojo. O outro menino também se levantou, numa tentativa de intimidar-me, para que eu não tentasse nada contra seu amigo. Mas eu não os temia; porque ainda que tentassem parecer assustadores, jamais deixariam de ser meros pobrezinhos assustados. Eu não sentia pena.
 Por que mente para mim, rapazinho? – perguntei.
 Não minto, senhora!  insistiu destemidamente  Só estamos aqui porque...
As palavras do menino foram interrompidas quando, de repente, todas as luzes da mansão às suas costas se acenderam subitamente. Desviei os olhos dele por um breve instante e depois voltei a encará-lo.
 Estarei de volta aqui antes que você possa contar até dois  depois apontei o dedo em seu rosto  Não se mova. Quero que continue aí sentado até que eu volte  eu me virei para o outro garoto, que não dissera uma palavra  O mesmo vale para você.
Eles prenderam o fôlego juntos, sentindo a acidez da ameaça implícita que eu lhes lancei.
Caminhei depressa, deixando a mala ali mesmo na rua. O salto alto cadenciava minha aproximação como em um compasso binário d’uma partitura de piano. Quando cheguei à porta da frente, percebi que não estava fechada. E duas coisas vinham de dentro da casa: uma claridade que emanava do fim do corredor largo, porém curto do hall de entrada, e o som de duas vozes que eu conhecia muito bem.
Empurrei a maçaneta devagar, aumentando o vão para que eu conseguisse passar sem fazer barulho. Mas a porta de madeira maciça era pesada; e um leve ruído foi inevitável. Fiquei imóvel por quase cinco segundos, com a audição tão aguçada que eu sentia como se pudesse ouvir o som de uma agulha caindo sobre o carpete. As vozes, porém, continuaram sua conversa. E eu entrei tomando o cuidado de andar na ponta dos pés, para não fazer barulho com o salto do sapato. Mas eu sabia que, na ponta dos pés ou não, o enorme carpete que se estendia por todo o cômodo abafaria qualquer barulho causado pela minha aproximação. Parei no canto do corredor, observando os dois homens na sala de estar, de uma maneira que eles não conseguiriam notar minha presença.
 Então porque teve que se esconder?  dizia Vicent, tremendo a arma na mão direita.
 Eu tive medo, Vicent! Tive medo de você!  o outro respondia, com a voz estranha de quem sabe que vai morrer; estranho fato sobre as pessoas que eu já constatara anteriormente.
 E porque teria medo se não fosse culpado?  indagou o irmão.
A pergunta me causou um sorriso. Vicent, meu Vicent, tão manipulável. Tão fraco.
Ele prosseguiu com uma conversa quase tão monótona quanto todas aquelas que me obrigou a ouvir durante meses, enquanto definhava sob sua vontade de vingar-se. Até o dia em que finalmente se achou possuidor da solução de todos os problemas: matar o irmão, que matou o próprio pai. E sentiu-se tão astuto por meramente juntar as poucas e simples peças do quebra-cabeça que eu cheguei a ter vontade de debochar de sua infantilidade.
E, enquanto eu vagava para um passado não muito distante encostada na parede do hall, perdi o “Grand Finale” de toda aquela cena dramática que acontecia a poucos metros de distância. Acordando-me dos meus devaneios, o som de um tiro repercutindo pelas paredes e ecoando nos cômodos enormes e vazios de uma casa que já não tinha mais dono. Esquecendo-me de toda a precaução, esgueirei-me para a sala de estar, a tempo de ver Phillip tombar sobre o chão com um baque abafado. Com a respiração ofegante, voltei a me esconder.
O silêncio que se seguiu foi brutal e esmagador. Durante o breve espaço de tempo em que a morte veio, pairou sobre aquela casa, e se foi levando mais uma alma para sua coleção; o mundo pareceu desprovido de sonoridade.
O barulho da arma caindo no chão marcou o momento em que a morte foi-se embora. E então, sem poder conter a curiosidade, espiei com cuidado o que estava acontecendo. “O que esse idiota pensa que está fazendo?”, foi o que me ocorreu, quando vi Vicent se aproximar do corpo do irmão que acabara de assassinar. E então eu percebi, com uma lufada gélida de algum tipo de vento atingindo-me diretamente no estomago, que tudo estava perdido.
Em meio segundo, todos os meus planos foram desfeitos. A outra metade dele, gastei refazendo-os. E enquanto Vicent lia a carta que eu escrevi para Phillip, me aproximei sorrateiramente e peguei a arma que ele deixara caída no chão às suas costas.
A boca seca. As mãos suando. O dedo no gatilho. O momento que eu vinha adiando, mesmo que sem entender meus motivos, tinha chegado.
E o meu pensamento foi: “Dois assassinatos em uma mesma família, em uma mesma casa, em uma mesma noite. Irônico.”
_______________________________________________________


Nenhum comentário:

Postar um comentário