sábado, 30 de março de 2013

Inception of the Clouds


Enquanto eu explicava as centenas de argumentos que explicitavam o fato do meu chefe ser o pior tipo de palerma existente no universo, você bebia seu uísque fingindo que dava a mínima para os meus problemas, resistindo à tentação de olhar para o relógio mais uma vez. Enquanto enxugava copos do outro lado do balcão, o barman nos encarava com certa impaciência, pois éramos um dos três últimos grupos de clientes que restavam: empecilhos declarados do tão aguardado fim do expediente. Então você levou o copo de uísque à boca e, depois de um último gole, depositou o copo sobre a mesa e...
Eu corria, porque a melhor coisa a fazer era encontrar algum lugar para colocar em prática o plano C ou D ou beta – eu já não sabia quantos tinham sido todos aqueles anteriores que deram errado. A única certeza era essa: eu corria rumo ao tudo ou nada. Minha respiração entrecortada fazia um barulho inconstante, contrastando com a velocidade compassada dos meus pés enquanto eu subia as escadas com pressa. E eu sabia, mesmo que não quisesse acreditar, que tudo dependia de que eu chegasse ao terraço antes que eles o fizessem. Ainda faltavam seis ou sete lances de escada, mas...
Lá estava ela. Sorria um sorriso brilhante e sereno, mesmo tendo a mesma certeza que eu tinha: a da morte. Da cama da enfermaria, ela me observava com seus olhos sempre taxativos, como se soubesse de coisas que eu não fazia ideia que pudessem existir. E eu quase era capaz de ver a vida se esvaindo de seu corpo lentamente, feito uma luz fraca que brilha alguns milésimos de segundo e depois se dissipa sem nenhum motivo. Dias? Horas? Minutos? Nem os médicos eram capazes de dizer. E eu tentava não pensar a respeito disso, apesar de...
Você me mandou calar a boca por um instante. O jeito que você disse isso, fechando os olhos com aspereza e esfregando a testa com as mãos, me fez parar imediatamente de falar. Então eu olhei para o seu rosto e, mesmo parecendo meio bêbado – eu conhecia bem a sua falta de tolerância a álcool na corrente sanguínea –, seus olhos continuavam sóbrios. Nos beijamos ali mesmo. E o barman continuava a nos encarar com impaciência por cima de seus copos, pois agora éramos os únicos a impedir que o pub fechasse as portas. Você murmurou alguma coisa inteligível antes de segurar minha mão e ajudar-me a colocar o casaco, depois saímos para a madrugada abaixo de zero e entramos no seu carro. Dirigir na neve não era o seu forte, mas eu tinha talento para gostar dos seus defeitos.
Do telhado de um prédio de dez andares, eu aguardava com uma arma apontada para os outros telhados da vizinhança. Lá embaixo estava ele, o homem que eu precisava proteger, fazendo seu discurso de posse. A multidão ensandecida o idolatrava, balançando bandeiras, gritando e aplaudindo a cada vez que ele fazia uma breve pausa em sua fala. Então, no prédio logo à minha frente, eu os vi. Eram seis deles, vestidos de preto para não serem facilmente notados na escuridão. Antes que a adrenalina fosse embora, atirei. E minha mira se mostrou eficiente na tarefa: pelo menos um estava morto. Abaixei a cabeça, escondendo-me sob o peitoril enquanto os cinco restantes atiravam às cegas contra os prédios da vizinhança. Arriscando-me novamente, outro tiro. Mas a bala somente serviu para denunciar minha posição ao inimigo. A munição estava no fim, e seria tarde demais se eu não agisse com rapidez e destreza. Audaciosamente, fiquei de pé e mirei: tiro certeiro. Em seguida, movendo o braço um pouco para a esquerda, acertei um terceiro na altura do ombro. Os demais caíram depois de algumas tentativas, e somente um restava. Puxei o gatilho para finalmente poder dizer que completara aquela missão, e um clique na arma denunciou que a munição acabara. Sem tempo para qualquer reação, olhei para baixo instintivamente e assisti à queda fatal do homem, da minha missão, e do meu emprego. Um corpo jazia diante da multidão.
Acreditar que milagres existem não seria suficiente para impedir que a vida seguisse seu fluxo natural rumo à morte, feito um rio correndo para o mar. Ela estava indo embora, e eu já não era capaz de protegê-la ou proibi-la de me deixar. Talvez, caso eu ainda confiasse nessas bobagens depois que a solidão tomasse conta da minha existência, eu poderia me apegar à crença de que nos encontraríamos outra vez em algum além. Entretanto, no momento em que os seus olhos perderam o foco e o aperto firme de sua mão na minha foi se afrouxando lentamente, eu percebi que já não acreditava em mais nada.


Nota aos leitores: Parte do desenrolar deste conto foi baseada no filme Inception ("A Origem", assista ao trailer acima); com um quê de outro dos meus filmes favoritos, Cloud Atlas ("A Viagem", assista ao trailer clicando aqui). Isso também explica o título, que à primeira vista parece não fazer sentido. Recomendo imensamente estas duas obras de arte do cinema, caso você tenha gostado deste texto.

2 comentários:

  1. Sim, você estava certa: adorei o conto. Foi bem criativo o que você fez com o tempo psicológico. Confesso que tive que ler o texto umas três vezes para compreendê-lo, mas por fim acabei me identificando com o narrador... “Quando de repente vários pensamentos e lembranças invadem sua cabeça de repente, sabe?” Não sei se era essa sua intenção, mas foi assim que interpretei. Só senti falta de uma coisa... As suas maravilhosas descrições dos lugares. Amo quando você descreve a cor de um sofá ou a fachada de um hotel sempre com uma pitada de sarcasmo ou uma tirada brilhante, comparáveis as descrições (que amo na mesma proporção) do meu querido Ken Follett.
    Mais uma vez, minha querida, Parabéns. Sei que não me canso de dizer isso. Mas quer saber de uma coisa? Enquanto você escrever continuarei te elogiando e parabenizando por ser essa maravilhosa escritora que é.
    Agora vou aproveitar que estou aqui nesta “infinita calmaria” e vou começar a ler sua nova história continuada.

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    1. Eu realmente tinha esse objetivo ao escrever, você acertou (novamente!). Vários pensamentos estão sempre nas nossas cabeças; e quando eu digo "nós" não estou me referindo somente às pessoas que costumam escrever, mas às pessoas em geral.
      No filme "Inception", existe essa coisa de sonhos dentro de sonhos, que eu acho muito interessante (e sempre tive vontade de escrever algo com tal apologia). Quanto ao "Cloud Atlas", há a confusão proposital no tempo. O que eu procurei fazer foi usar essas duas ideias combinadas, deixando o leitor decidir se o narrador em primeira pessoa era o mesmo para as três histórias ou não. Isso resultou em um conto "três em um".
      Peço desculpas, querida amiga, pela falta das descrições minuciosas que você tanto preza (e que às vezes me irritam quando leio meus próprios escritos e acabo considerando-os demasiadamente carregados de detalhes pouco importantes). Como eu disse, o conto é uma combinação de três histórias, e seria muito cansativa e longa caso eu fizesse aquelas descrições de sempre.
      Mais uma vez, Lê, agradeço seus elogios. Você sabe o quanto significam para mim! Obrigada pelo comentário e pelo apoio... Espero que goste da nova história continuada! Abraços!

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