Enquanto eu explicava as centenas de argumentos que
explicitavam o fato do meu chefe ser o pior tipo de palerma existente no
universo, você bebia seu uísque fingindo que dava a mínima para os meus
problemas, resistindo à tentação de olhar para o relógio mais uma vez. Enquanto
enxugava copos do outro lado do balcão, o barman nos encarava com certa
impaciência, pois éramos um dos três últimos grupos de clientes que restavam: empecilhos
declarados do tão aguardado fim do expediente. Então você levou o copo de
uísque à boca e, depois de um último gole, depositou o copo sobre a mesa e...
Eu corria, porque a melhor coisa a fazer era encontrar
algum lugar para colocar em prática o plano C ou D ou beta – eu já não sabia
quantos tinham sido todos aqueles anteriores que deram errado. A única certeza
era essa: eu corria rumo ao tudo ou nada. Minha respiração entrecortada fazia
um barulho inconstante, contrastando com a velocidade compassada dos meus pés
enquanto eu subia as escadas com pressa. E eu sabia, mesmo que não quisesse
acreditar, que tudo dependia de que eu chegasse ao terraço antes que eles o
fizessem. Ainda faltavam seis ou sete lances de escada, mas...
Lá estava ela. Sorria um sorriso brilhante e sereno,
mesmo tendo a mesma certeza que eu tinha: a da morte. Da cama da enfermaria,
ela me observava com seus olhos sempre taxativos, como se soubesse de coisas
que eu não fazia ideia que pudessem existir. E eu quase era capaz de ver a vida
se esvaindo de seu corpo lentamente, feito uma luz fraca que brilha alguns
milésimos de segundo e depois se dissipa sem nenhum motivo. Dias? Horas? Minutos?
Nem os médicos eram capazes de dizer. E eu tentava não pensar a respeito disso,
apesar de...
Você me mandou calar a boca por um instante. O jeito que
você disse isso, fechando os olhos com aspereza e esfregando a testa com as
mãos, me fez parar imediatamente de falar. Então eu olhei para o seu rosto e,
mesmo parecendo meio bêbado – eu conhecia bem a sua falta de tolerância a
álcool na corrente sanguínea –, seus olhos continuavam sóbrios. Nos beijamos
ali mesmo. E o barman continuava a nos encarar com impaciência por cima de seus
copos, pois agora éramos os únicos a impedir que o pub fechasse as portas. Você
murmurou alguma coisa inteligível antes de segurar minha mão e ajudar-me a
colocar o casaco, depois saímos para a madrugada abaixo de zero e entramos no
seu carro. Dirigir na neve não era o seu forte, mas eu tinha talento para
gostar dos seus defeitos.
Do telhado de um prédio de dez andares, eu aguardava com
uma arma apontada para os outros telhados da vizinhança. Lá embaixo estava ele,
o homem que eu precisava proteger, fazendo seu discurso de posse. A multidão ensandecida
o idolatrava, balançando bandeiras, gritando e aplaudindo a cada vez que ele
fazia uma breve pausa em sua fala. Então, no prédio logo à minha frente, eu os
vi. Eram seis deles, vestidos de preto para não serem facilmente notados na
escuridão. Antes que a adrenalina fosse embora, atirei. E minha mira se mostrou
eficiente na tarefa: pelo menos um estava morto. Abaixei a cabeça,
escondendo-me sob o peitoril enquanto os cinco restantes atiravam às cegas
contra os prédios da vizinhança. Arriscando-me novamente, outro tiro. Mas a bala
somente serviu para denunciar minha posição ao inimigo. A munição estava no
fim, e seria tarde demais se eu não agisse com rapidez e destreza. Audaciosamente,
fiquei de pé e mirei: tiro certeiro. Em seguida, movendo o braço um pouco para
a esquerda, acertei um terceiro na altura do ombro. Os demais caíram depois de
algumas tentativas, e somente um restava. Puxei o gatilho para finalmente poder
dizer que completara aquela missão, e um clique na arma denunciou que a munição
acabara. Sem tempo para qualquer reação, olhei para baixo instintivamente e
assisti à queda fatal do homem, da minha missão, e do meu emprego. Um corpo
jazia diante da multidão.
Acreditar que milagres existem não seria suficiente para
impedir que a vida seguisse seu fluxo natural rumo à morte, feito um rio
correndo para o mar. Ela estava indo embora, e eu já não era capaz de
protegê-la ou proibi-la de me deixar. Talvez, caso eu ainda confiasse nessas
bobagens depois que a solidão tomasse conta da minha existência, eu poderia me
apegar à crença de que nos encontraríamos outra vez em algum além. Entretanto,
no momento em que os seus olhos perderam o foco e o aperto firme de sua mão na
minha foi se afrouxando lentamente, eu percebi que já não acreditava em mais
nada.
Nota aos leitores: Parte do desenrolar deste conto foi baseada no filme Inception ("A Origem", assista ao trailer acima); com um quê de outro dos meus filmes favoritos, Cloud Atlas ("A Viagem", assista ao trailer clicando aqui). Isso também explica o título, que à primeira vista parece não fazer sentido. Recomendo imensamente estas duas obras de arte do cinema, caso você tenha gostado deste texto.
Sim, você estava certa: adorei o conto. Foi bem criativo o que você fez com o tempo psicológico. Confesso que tive que ler o texto umas três vezes para compreendê-lo, mas por fim acabei me identificando com o narrador... “Quando de repente vários pensamentos e lembranças invadem sua cabeça de repente, sabe?” Não sei se era essa sua intenção, mas foi assim que interpretei. Só senti falta de uma coisa... As suas maravilhosas descrições dos lugares. Amo quando você descreve a cor de um sofá ou a fachada de um hotel sempre com uma pitada de sarcasmo ou uma tirada brilhante, comparáveis as descrições (que amo na mesma proporção) do meu querido Ken Follett.
ResponderExcluirMais uma vez, minha querida, Parabéns. Sei que não me canso de dizer isso. Mas quer saber de uma coisa? Enquanto você escrever continuarei te elogiando e parabenizando por ser essa maravilhosa escritora que é.
Agora vou aproveitar que estou aqui nesta “infinita calmaria” e vou começar a ler sua nova história continuada.
Eu realmente tinha esse objetivo ao escrever, você acertou (novamente!). Vários pensamentos estão sempre nas nossas cabeças; e quando eu digo "nós" não estou me referindo somente às pessoas que costumam escrever, mas às pessoas em geral.
ExcluirNo filme "Inception", existe essa coisa de sonhos dentro de sonhos, que eu acho muito interessante (e sempre tive vontade de escrever algo com tal apologia). Quanto ao "Cloud Atlas", há a confusão proposital no tempo. O que eu procurei fazer foi usar essas duas ideias combinadas, deixando o leitor decidir se o narrador em primeira pessoa era o mesmo para as três histórias ou não. Isso resultou em um conto "três em um".
Peço desculpas, querida amiga, pela falta das descrições minuciosas que você tanto preza (e que às vezes me irritam quando leio meus próprios escritos e acabo considerando-os demasiadamente carregados de detalhes pouco importantes). Como eu disse, o conto é uma combinação de três histórias, e seria muito cansativa e longa caso eu fizesse aquelas descrições de sempre.
Mais uma vez, Lê, agradeço seus elogios. Você sabe o quanto significam para mim! Obrigada pelo comentário e pelo apoio... Espero que goste da nova história continuada! Abraços!