domingo, 25 de novembro de 2012

O crime de Vicent Nicholls - Capítulo Final

Corri escada acima tão velozmente que, mesmo tropeçando três vezes nos degraus, não me dei o luxo de cair. Eu me curvei um pouco, a princípio de maneira involuntária, depois para tentar esconder-me tanto quanto fosse possível por detrás do corrimão. Dorota atirava sem piedade, mas por sorte, sua mira era terrivelmente ruim. Os tiros passavam a seguros centímetros de distância.
Disparei para o segundo andar da mansão, tomando o cuidado de correr diretamente para o lado oposto da enorme sala, depois de localizar  em uma fração de segundos  o interruptor. O ambiente escureceu-se de súbito; e eu fique cego por alguns instantes, antes de me acostumar com a pouca luz. O fogo da lareira, agora já se apagando, lançava um fraco brilho alaranjado sobre a mobília. E enormes janelas entalhadas criavam faixas consecutivas de luz e escuridão, a partir da claridade das luminárias da rua. Quando eu a ouvi proferir qualquer ameaça lá embaixo, fiz o possível para acalmar meu coração, que pulsava tão forte e tão alto, que cheguei a acreditar que Dorota poderia escutá-lo.
Eu não fazia a menor ideia de quais eram as minhas opções, além daquela em que eu seria assassinado por minha própria esposa. Tentei arquitetar algum plano de fuga, mas agora eu sabia que Dora era perigosa: jamais permitiria que eu saísse a salvo dessa armadilha tão brilhantemente planejada.
Enquanto ouvia passos na escada, me movimentei o mais sorrateiramente possível à procura de algum lugar para me esconder. Por mais que tentasse, Dorota obviamente não conseguia ser silenciosa à minha audição tão aguçada pelo medo e pela adrenalina; ao menos, não tanto ela quanto desejava. Com uma agilidade que não me era comum, ocultei-me atrás de uma armadura medieval, que era mais um membro pouco discreto da decoração exagerada da mansão. Por lá fiquei, prendendo a respiração para não chamar a atenção.
Ela chegou.
Observei-a pela pequena fresta entre o braço e o tronco da armadura de metal, enquanto ela esquadrinhava o ambiente aparentemente deserto. Enquanto procurava, andando devagar e checando cada possível esconderijo, disse-me:
 Acha mesmo que adiar sua morte é uma opção sensata, meu marido?  a voz era calma e letal, quase maníaca  Não é prudente irritar-me! Assim você acabará por me obrigar a lhe presentear com uma morte lenta, querido, mas não quero fazer meu marido sofrer. Ao menos, não muito.
– Não seja tola, Dora querida!  ela rapidamente voltou-se para a direção de onde vinha o som de minha voz, tentando encontrar-me  Antes que me mate, eu a terei imobilizado e pego de volta minha arma.
Aproximou-se devagar, ao mesmo tempo em que corri, evitando passar pela luz para não ser localizado, para detrás da poltrona em frente à lareira. Ela atirou às cegas, pois apenas era possível ouvir-me correr, sem poder ver de onde saí ou para onde fui.
– Sabe, Dora  falei, imprudentemente, procurando uma maneira de distraí-la e irritá-la. Eu agora tinha um plano: faria com que Dorota gastasse toda a munição, para que pudesse me livrar da morte  Quero contar que eu a traí  senti como se o ar tivesse ficando mais pesado; de alguma maneira, eu sabia que atingira o ego de minha esposa vaidosa  Muito bela, a moça. Uma francesa. Você não sabe o quanto aquele sotaque me atrai... Aliás, nem eu mesmo sabia!
Dorota atirou duas vezes na direção da poltrona, e eu corri para o lado oposto da sala. Mas dessa vez, as coisas não saíram como o planejado. Na pressa, esqueci de me esquivar da luz. Dorota atirou mais duas ou três vezes e um dos tiros passou de raspão na minha perna. Desabei sob meu próprio peso, bem diante da claridade que vinha do enorme vitral decorado. Gritei. Sem saber ao certo se o fizera pela agonia, pela dor ou pela derrota. Dorota riu uma risada demente, encontrou o interruptor e reacendeu todas as luzes. Tentei me levantar, mas já era tarde demais. Ela caminhou em minha direção, adiando cada passo para dar os devidos dramas aos meus últimos momentos de vida.
 Você é repugnante, Vicent  disse-me, parando à minha frente.
 E você é demente!  disparei, arquejando, sabendo que já não tinha mais nada a perder.
 Você deveria apresentar um pouco mais de respeito diante de uma mulher traída empunhando uma arma.
 Você deveria parar de falar como se fosse uma mulher digna de algum respeito.
 Tem algumas últimas palavras a dizer?  disse ela, levantando uma das sobrancelhas e tremendo o lábio, seu tique nervoso de quando estava realmente furiosa.
 Tenho  eu disse a frase seguinte bem devagar, pontuando cada palavra  Você é demente.
O tiro. O grito. E a queda.
O corpo de Dorota caiu imóvel bem ao meu lado, ainda com os olhos abertos e os cabelos loiros formando um véu fino sobre o rosto. Logo atrás dela, a pouco mais de dois metros de distância, um menino segurando uma arma. Ele tinha a respiração ofegante e os ombros tensos: exatamente a mesma posição do dia em que o conheci. Christopher.
Ele soltou a arma no chão, com o olhar assustado e a boca escancarada. Aproximou-se correndo e abaixou-se ao meu lado. Suas primeiras palavras foram:
 Ela... ela está...?
 Morta  completei, encarando-o com seriedade. Depois acrescentei:  E você salvou minha vida, garoto.
Ele se deixou cair, espantado. Apoiei-me no chão e segurei-lhe um ombro.
 Ei  os olhos verdes e marejados de Christopher encontraram os meus  Está tudo bem. Acabou.
Antes que eu pudesse esboçar qualquer reação, ele me abraçou com força e chorou ruidosamente; soluçando e molhando todo o rosto e até parte das minhas costas com seu fluxo interminável de lágrimas. Sem saber o que fazer, apenas retribuí, repetindo o que já tinha dito, numa maltrapilha tentativa de acalmá-lo. Poucos instantes depois, o transe do garoto se desfez, quando o som de sirenes distantes pôde ser ouvido. Algum vizinho provavelmente chamara a polícia. Ele me encarou, esperando instruções.
 Vá embora  ordenei.
 Senhor?  perguntou intrigado.
– Vá, garoto! Eu sei me virar!
 Não, senhor! Não!  ele se pôs a gritar, enquanto enxugava as lágrimas com a manga da camisa  Eu posso ajudá-lo a caminhar! Vamos embora juntos, não se preocupe! Eu...
 Não há tempo, Christopher!  interrompi  Não seja tolo! Eu só vou atrasá-lo, e seremos os dois pegos! Você tem que ir agora...
 Não, Sr. Nicholls, por favor...
 Isso é uma ordem, garoto!  gritei, antes que ele recomeçasse  Veja bem, quero que faça o seguinte: saia pelos fundos para não ser visto. E volte ao Bela Vista. Pegue o que for seu e depois vasculhe a minha mala. Vai encontrar algum dinheiro no fundo falso. Não é muita coisa, mas já é o suficiente. Quero que saia de Londres e vá tentar a vida noutro lugar. Eu ficarei bem. Não tem que se preocupar comigo. Nada de mal vai me acontecer... Mas vá depressa! A polícia invadirá a casa em instantes!
Christopher pôs-se a chorar outra vez e abraçou-me novamente.
 O s-senhor  gaguejou, levantando-se  O senhor foi o único que já me fez algo de bom, Sr. Nicholls... Mu-muito obrigado, m-muito mesmo! Um dia, eu sei, nos encontraremos novamente. Eu juro, Sr. Nicholls! Nós nos encontraremos novamente!
Ele virou-se de costas para mim e correu escada abaixo. E eu voltei a me deitar no chão, ao lado do corpo de Dorota, já sem sentir nenhuma dor na perna.
 Espero que sim, garoto  fiz uma pausa e engoli em seco, pensando no quanto um estranho, um menino de rua, foi capaz de se tornar importante para mim tão instantaneamente  Espero que sim, meu filho.
Talvez jamais chegássemos a nos encontrar outra vez; mas Christopher seria, para sempre, o meu garoto.

***

Os primeiros tímidos raios de sol já iluminavam o céu quando dois policiais saíram da mansão, cada qual agarrado a um braço de um Sr. Nicholls manco e algemado. Eram uma ambulância e três viaturas, paradas na rua; uns sete ou oito policiais e dois enfermeiros. Os corpos do irmão e esposa do Sr. Nicholls estavam cobertos por lençóis encardidos, sobre duas macas prestes a serem colocadas na ambulância. Os peritos já tinham ido embora. Também já tinham-se ido meu melhor amigo, Louis; e a francesa, Srta. Fontaine. Todos o abandonaram. Inclusive eu, que o deixei sozinho para a polícia. Do galho de uma frondosa árvore na metade da rua, eu observava aquilo tudo. Escondido.
Eu não chorava. Cheguei a conclusão  depois de minhas lágrimas terem secado  de que era inútil chorar. Nada disso livraria o Sr. Nicholls da cadeia. Tive de me conter para não saltar daquele galho e correr em direção à mansão; para me entregar no lugar dele quando esse pensamento me ocorreu. Seria inútil, eu sabia. E, caso servisse para alguma coisa, eles me prenderiam também. E todo o esforço do Sr. Nicholls para salvar-me teria sido vão. Eu não queria decepcioná-lo novamente. 
Enquanto eu pensava em tudo isso até minha cabeça doer, colocaram-no dentro da viatura. Os policiais conversaram por alguns instantes, depois dois deles também entraram no carro. De cima da árvore, vi-os passarem bem embaixo de mim. De alguma maneira inexplicável, como se um ímã o tivesse puxado, Sr. Nicholls me olhou. Espantado com a minha presença, ele demorou alguns instantes para acreditar nos próprios olhos. Depois sorriu e ergueu as mãos algemadas como quem mostra um troféu. Não parecia feliz, nem triste. Apenas aliviado. E naquele momento, de alguma forma inexplicável, eu soube. Soube que tudo estava bem.


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Meus mais sinceros agradecimentos a todos que acompanharam a história, apesar de todos os atrasos e contratempos. A história continuada, intitulada "O Jardineiro", promete muito suspense e logo mais estará disponível. Espero que dediquem a ela o mesmo carinho e atenção que foram dedicados a esta que acaba de terminar. Aguardem mais informações!
                                                                                                (Larissa S.)

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