quarta-feira, 29 de agosto de 2012

O crime de Vicent Nicholls - Capítulo XI


 Onde? Onde está aquele cretino?  gritou o Sr. Nicholls, enquanto me sacudia.
 Aca... Acalme-se, senhor  eu tentava dizer.
Mas ele parecia não me ouvir. Empurrou-me com força e obrigou-me a sentar na cama. Foi quando eu notei uma terceira pessoa no quarto: uma mulher. Era linda e delicada, apesar de vestir-se apenas com um roupão. Eu a encarei boquiaberto, depois olhei assustado para o Sr. Nicholls, que de repente também pareceu se lembrar de que não estávamos sozinhos.
Ele virou-se para a mulher e sibilou entre dentes:
 Saia.
 Vicent, eu tenho tanto interesse no que ele tem a dizer quanto vo...
 Saia do meu quarto agora, sua vagabunda!  gritou, apontando para a porta.
Ele tinha uma expressão de fúria intensa; o canto da boca levantado de um jeito que dava um ar hostil às suas feições, como se fosse começar a rosnar a qualquer momento. Os olhos estreitados em uma linha fina, e a testa enrugada em uma carranca ameaçadora. A mulher se encolheu com o grito, e arregalou os olhos de pavor. Ficou alguns segundos estática, paralisada de medo. Depois obedeceu a ordem que recebera, correndo para o corredor.
O Sr. Nicholls trancou a porta quando ela saiu, depois se pôs a caminhar de um lado para o outro do quarto. Eu já tinha parado de ofegar quando ele parou diretamente à minha frente, olhando-me de cima. 
 Agora me diga o que sabe – a voz era estranhamente calma  E não esconda nenhum detalhe.
 Sim, senhor.
Contei exatamente tudo o que vi. Falei de Louis, dos meninos que me forneceram informações e da velha mendiga que disse “saber o que eu fora fazer naquela rua”, depois me acusou de espioná-la  oh, céus, como foi difícil me livrar daquela louca escandalosa! Contei detalhes da casa, dos dois seguranças que revezavam a guarda da propriedade e dos boatos de que o Sr. Mason quase nunca deixava a mansão. Contei que passei a noite na pequena praça diante do casarão, para obter mais informações.  E que descobri que a cozinheira, a empregada e o mordomo iam embora por volta do começo da noite, e só voltavam nas primeiras horas da manhã seguinte. A casa ficava vazia durante esse tempo, exceto pelo patrão e os dois guardas.
Já começava a entardecer quando eu terminei de narrar os acontecimentos. E meu estômago fez um barulho escandaloso quando me lembrei que não comia nada há mais de um dia. Apesar de estar acostumado, eu estava faminto. O Sr. Nicholls também pareceu perceber a mesma coisa. Levantou-se da cama onde estava sentado e revirou a mala, onde pegou um pouco de dinheiro, sem se importar com a minha presença. 
 Venha, garoto  disse-me, colocando o chapéu  Você merece alguma recompensa.
Ele saiu para o corredor e fez sinal para que eu o acompanhasse. Obedeci, ainda que intrigado. Descemos as escadas em silêncio. O recepcionista, que parecia nunca melhorar a cara feia, nos observou por cima de seu jornal amassado quando passamos por ele. O ar parecia mais leve e fácil de respirar quando saímos do hotel. E o entardecer lançava uma luz laranja sobre as ruas, deixando tudo com um aspecto corado e bonito; muito diferente do ambiente lúgubre que era o Bela Vista.
Algumas crianças passeavam pelas calçadas, voltando da escola depois de mais um dia de aula. E carros transitavam pelo calçamento de pedra, dirigidos por homens que seguiam para casa após o fim de seus expedientes de trabalho.
 Sabe me dizer se há algum alfaiate aqui por perto, Christopher?
 Sim, senhor. Fica na Rua do Viajante.
 Leve-me até lá.
Quando chegamos, já se aproximava a hora dos estabelecimentos fecharem. Mas o Sr. Nicholls portava-se de maneira decidida quando entrou na loja, chamada “Alfaiataria dos Irmãos Mitchell”. Fiz o possível para que ele me deixasse de fora, mas não era fácil convencer um homem muito maior e mais forte que eu: arrastou-me porta adentro pelo braço.
Um velho magro e barbudo, que usava um monóculo com uma corrente de ouro veio correndo até nós. Vestido impecavelmente em um terno azul escuro  que, de alguma forma, parecia fazer seus cabelos abundantes parecerem ainda mais brancos , tinha olhos muito claros e falsamente gentis, ainda que adornados por muitas rugas.
 Seja muito bem vindo, senhor  disse, fazendo uma meia reverência e sorrindo  Em que posso servi-lo?
 Quero comprar roupas novas para o garoto  respondeu o Sr. Nicholls, fazendo um aceno de cabeça indicando-me.
A interrogação do alfaiate foi quase a mesma da minha: “Para mim?”; “Para ele?”  perguntamos ao mesmo tempo. O sorriso do velhote se abalou por um instante quando viu sua loja de prestígio sendo invadida por um menino de rua esfarrapado.
 Sim. Isso é um problema?  provocou o Sr. Nicholls, depois acrescentou:  Eu vou pagar.
Era só o que o senhor precisava ouvir. Quase imediatamente, começou a procurar roupas que poderiam me servir, e depois me empurrou para dentro do provador. Eu não fazia ideia do quanto fora gasto naquela loja, mas quando a deixei, estava praticamente irreconhecível.
A noite já era adiantada quando saímos de lá. Os postes de iluminação das ruas estavam acesos e o movimento de carros tinha diminuído.  O Sr. Nicholls me levou para um restaurante e permitiu, inclusive, que eu escolhesse o que comer. Com certa dificuldade, li as opções do cardápio e pedi um prato de frango grelhado, acompanhado de algumas outras coisas. Foi só quando passamos à sobremesa que eu me lembrei de agradecer.
 O senhor é um grande homem  eu disse, com a boca cheia de sorvete de baunilha  Obrigado por tudo o que tem feito por mim.
O Sr. Nicholls encarou-me com seriedade.
 É apenas o meu pagamento pelo seu bom trabalho, garoto.
 Talvez eu nem mereça tudo isso, senhor  respondi com humildade.
 Mas merecerá em breve  ele fez uma grande pausa, olhando-me fixamente  Christopher... eu preciso que você faça uma coisa para mim.

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Link do Capítulo X (anterior)

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