sexta-feira, 10 de agosto de 2012

O crime de Vicent Nicholls - Capítulo VI


O garoto pareceu tão empolgado ao deixar o quarto, que cheguei a supor que ele poderia voltar dentro de meia hora trazendo boas notícias. Sorri com o pensamento otimista, pelo fato de ser tão improvável. Tomei um banho quente enquanto pensava em tudo o que acabara de dizer a Christopher. Depois, corajosamente, refiz os curativos do braço.
Ainda sem me vestir, enrolado na toalha, abri a mala e procurei por mais dinheiro debaixo das roupas. Tinha uma quantia suficiente para a diária de aproximadamente duas semanas, talvez um pouco mais. O hotel poderia até ser o pior de toda a Londres, mas só por estar aí localizado, já se sentia no direito de cobrar caro pela hospedagem. Apanhei o necessário e recoloquei o restante de volta à mala.
Vesti as roupas, peguei a arma que eu tinha confiscado do garoto e coloquei-a no cinto. Arranjei o paletó por cima dela, tomando o cuidado de olhar-me no espelho do banheiro para ter certeza de que não estava à vista. Peguei o chapéu e saí do quarto.
Tranquei a porta, guardei a chave no bolso da calça e caminhei calmamente pelo corredor. Mesmo sendo dia, a claridade era um pouco ofuscada. Ainda assim, o papel de parede encardido tinha uma cor feia. Além do fato de que descascava em algumas partes onde parecia ter sido roído por ratos. Os vasos de flores que eventualmente apareciam na decoração apenas tinham folhas secas e ervas daninhas. E as poltronas azuladas desmontariam só com o pensamento de alguém que ousasse sentar-se nelas. Desci a escadaria que rangia, vendo aranhas fugirem para se esconder em suas teias quando eu passava perto delas.
Quando cheguei à recepção, uma mulher caminhava até o balcão. E eu não podia negar que ela era absurdamente linda. Excluindo a Christopher e a mim mesmo, seria provavelmente a única hóspede do Bela Vista. Ao observá-la rapidamente, a primeira coisa que me ocorreu era que não deveria passar de uma prostituta, a julgar pelo modo com que se portava. Mas depois de alguns segundos olhando bem, percebi que aquela dama tinha muita classe. Não fazia sentido, porém, que precisasse se hospedar em um hotel tão decadente. Seu andar imponente fez um calafrio percorrer-me o corpo, como se mesmo sem dizer nada, ela pudesse me intimidar.
A maquiagem dos olhos era muito escura e o batom cor de sangue. O vestido – sabiamente planejado para exaltar as belas curvas que ela tinha – também era vermelho, rente ao corpo até a cintura, onde ficava rodado e assumia um tom preto aveludado até terminar pouco abaixo dos joelhos. Os cabelos muito negros estavam presos em um coque; e o chapéu preto tinha uma grande flor rubra do lado esquerdo. Carregava uma única mala, marrom escura.
Desgrudei os olhos dela e fui até a recepção, onde o velho encarava a aproximação da moça com a boca escancarada.
– Vim acertar o adiantamento.
O recepcionista mal conseguia ouvir o que eu estava dizendo. Era como se a mulher fosse um ímã a seus olhos. Ela parou diante do balcão e nos cumprimentou com um aceno de cabeça, sem dizer nada, depois aguardou a sua vez. Aquilo pareceu um incentivo ao velho, que de repente percebeu a necessidade de despachar-me o mais rápido possível.
– Sim – disse-me, limpando o suor da testa com um lenço – E vai pagar por quantas noites?
– Cinco noites, por enquanto.
Entreguei-lhe o dinheiro enquanto a mulher assistia a tudo, depois me virei de costas para eles e caminhei rumo à porta de saída.
– Ei, você – chamou a mulher quando eu mudei o passo. Encarei-a com indiferença. E ela continuou antes que eu pudesse dizer qualquer coisa: – Você tem um cigarro?
– Tenho – voltei a dar-lhe as costas.
Silêncio.
– E então? – disse ela, quando eu já estava à porta do corredor.
– E então o quê? – perguntei, levantando as sobrancelhas.
– Eu quero um cigarro – ela estendeu uma das mãos e eu abaixei a cabeça para sorrir de um modo meio irônico, depois voltei a ficar sério.
– Compre-o – respondi simplesmente, levantando as sobrancelhas.
Ela não pareceu se afetar com a minha falta de modos e eu também não me importava nem um pouco com a imagem que pudesse fazer de mim. Saí para as ruas de Londres. A manhã estava amena e os carros transitavam exibindo todo o luxo da cidade grande, contrastando com a miséria dos mendigos que estendiam as mãos pedindo dinheiro aos pedestres. Caminhei por cerca de vinte minutos, apreciando a vista. Os casarões antigos, as construções modernas, as praças, as belas mulheres.
Entrei na casa de penhores e fiquei espantado com a quantidade de coisas à venda. Um caminho estreito ligava a porta ao balcão, que ficava no fundo da loja: tudo em volta eram objetos. Haviam livros, vasos com plantas, bússolas, estatuetas, ferramentas, cadeiras, jogos de chá em porcelana, abajures, pinturas com molduras antigas, portas-casaco e até uma geladeira e um piano antigo – sobre o qual descansava uma porção de outros objetos. O dono era um homem com pouco mais de quarenta anos e a expressão mais desonesta que eu já vira na vida. Seus ombros eram curvados para frente, o nariz era enorme e pontudo, seus olhos saltados encaravam-me como que perguntando o que é que eu tinha a oferecer. Era um vigarista, nada mais que isso.
– Em que posso servi-lo, meu senhor? – a voz era falsamente educada.
Tirei a arma da cintura e coloquei-a sobre o balcão. O homem encolheu-se um pouco.
– Fale-me sobre essa arma.
Ele a segurou por alguns instantes, franzindo a testa. Examinou-a de vários ângulos, tirou as balas, recolocou-as, depois disse:
– É um revolver calibre vinte e dois – fez uma pausa e empunhou-o na altura da cabeça, com um dos olhos fechados, fazendo mira em qualquer coisa – Eu diria ser relativamente preciso, apesar de não ser tão confiável por já estar um tanto velho... eu precisaria fazer outras avaliações para afirmar com certeza – aqui ele desmontou a arma com a facilidade de alguém que o faz com frequência – Acho que deve ser bastante barulhento.
Era tudo o que eu precisava ouvir.
– Quero trocá-la por algo mais moderno e silencioso – eu disse, enquanto tirava o relógio do pulso e o colocava sobre o balcão – acrescente isso às suas contas.
O homem sumiu por uma porta à sua esquerda e voltou menos de cinco minutos depois, com uma caixa de madeira nas mãos. Ele a abriu com cuidado e mostrou-me o interior.
– É uma pistola calibre quarenta e cinco – disse orgulhosamente, quase sorrindo – Você tem sorte, acabe ide comprá-la. Foi usada na guerra. É silenciosa... bem, na medida do possível; e a mira não deixa a desejar, eu mesmo testei.
Peguei a arma que era preta e reluzente, analisando-a. Exatamente o que eu precisava! Mas algo me dizia que não sairia barata.
– Quanto quer por ela? – perguntei.
O homem sorriu: era o que ele queria ouvir.
– Ora, ora, senhor – disse, daquela maneira irritante e fingida – Entenda que é uma boa arma. Não me agrada a ideia de ter que me desfazer dela tão depressa.
– O revolver e o relógio pela pistola – propus.
Ele riu falsa e ruidosamente.
– Senhor, não brinque com um homem de negócios! Com todo o respeito, essa pistola vale duas vezes o seu revólver e muito mais que seu relógio!
Ajeitei o chapéu e suspirei. Tirei o dinheiro que sobrou do acerto do hotel do bolso interno do paletó e coloquei sobre o balcão.
– Se essa quantia não for suficiente para cobrir a diferença – eu fiz uma pausa e olhei o homem nos olhos –, eu vou embora.
Ele encarou-me com uma expressão de desdém, resmungou alguma coisa sobre não ter nada a perder e aceitou minha oferta.
De volta à rua, fui pego de surpresa por uma chuva fina que começava a cair. Apressei o passo. Com um pouco de sorte, chegaria ao Bela Vista sem ficar ensopado. Só precisava torcer para que a a tempestade que se formava esperasse mais alguns minutos para desabar.
Caminhando com pressa, experimentei a estranha sensação de estar sendo observado. Andei por duas quadras sentindo um formigamento na nuca, como se um par de olhos estivesse pregado nela. Meus sentidos se aguçaram involuntariamente, do jeito acontece quando me sinto em perigo. Eu estava atento a todos os ruídos que me cercavam, sentindo os cheiros mais discretos e vendo detalhes com clareza.
Me virei de súbito quando ouvi passos.
– Você? – espantei-me.
– Sim, eu. E quero saber quem você está pretendendo matar.  

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