segunda-feira, 6 de agosto de 2012

O crime de Vicent Nicholls - Capítulo IV


Eu observava a rua pouco movimentada lá embaixo. Da sacada do segundo andar da mansão, o dia parecia ainda mais cinzento. Grandes nuvens negras pairavam sobre a cidade de Londres. Uma garoa fina parecia engolir os casarões mais distantes da vizinhança, envolvendo-os numa ampla névoa. Com algum esforço, porém, era possível enxergar seus contornos majestosos.
A calçada estava coberta por uma camada de água acumulada durante a noite. E o gramado, molhado pelo orvalho, assumira um tom muito verde – como sempre acontecia nos fins de inverno, quando a neve ia-se embora completamente, deixando um “até logo” e votos de uma boa primavera.
Sentado no meio fio, um garoto de rua encarava a mansão com olhos sonhadores. Não era a primeira vez que eu o via fazer isso, mas era perdoável: de fato, havia muito a se admirar. Minha casa era uma construção imponente de dois andares, pintada de marfim. O jardim fora milimetricamente planejado para ser perfeito: arbustos em forma de animais, canteiros de margaridas, um pequeno lago e um chafariz. Duas grandes colunas dóricas sustentavam a varanda e a sacada do segundo andar. E três vitrais de dois metros de altura eram postos de cada lado delas. Um caminho de pedra começava na calçada e terminava na porta da mansão, transformando-se em uma escadaria. É claro que seria impossível passar diante disso e não se impressionar.
Essa bela residência em Londres, tudo o que havia dentro dela, todas as outras casas em outras cidades e a fortuna depositada no banco faziam parte da herança deixada a mim por meu pai, que descansava em paz há pouco mais de um ano. Como eu era o único filho legítimo e sua segunda esposa também já estava morta – pobre mulher! –, não havia mais ninguém que, por direito, poderia colocar as mãos naquele dinheiro todo.
Minha mãe morrera um dia depois de me dar à luz, em decorrência de complicações do parto. E quando eu tinha por volta de três anos de idade, meu pai decidiu se casar novamente. Os motivos eu nunca soube, apesar de ter algumas suposições. Na verdade, acho que ele nem amava aquela moça. Ela era muito mais jovem e não tinha nem família, nem dinheiro e nem honra: era mãe de um bebê recém-nascido e não sabia sequer quem era o pai de tal criança. Talvez o meu pai simplesmente tenha se compadecido dela, ou estivesse à procura de alguém que pudesse substituir a primeira esposa.
O menino e eu crescemos como irmãos. Eu o amava tanto que chegava a esquecer que o nosso sangue não era o mesmo – não tínhamos sequer o mesmo sobrenome, pois ele herdara o sobrenome de sua mãe. Ainda assim, ele sempre foi meu braço direito em todas as traquinagens que planejávamos e aprontávamos juntos. Meu pai, homem bondoso, permitia que o garoto também o chamasse de pai. Quando éramos jovens, o país entrou na Segunda Grande Guerra. Eu tinha vinte anos e já podia me alistar, mas a idade do meu irmão ainda não permitia que ele fizesse o mesmo. Fui chamado a defender a minha pátria e lutei bravamente para impedir que a escória nazista triunfasse. Atirei em quem deveria atirar; protegi quem deveria proteger.
Meu pai se orgulhava dos meus méritos. Cheguei a ganhar medalhas e ser promovido. Mas o garoto que crescera comigo, antes tão gentil, começou a ter comportamentos estranhos.  Ele sentia inveja de mim e ciúmes do meu pai. Tornou-se rude, malcriado e agressivo. Em 1940, quando completou dezoito anos, ele também se alistou, mas foi recusado. Isso só fez piorar as coisas.
Fui dispensado um ano depois do fim da guerra. Voltei para casa com honra. E houve uma grande festa para comemorar meu retorno. Nesta noite conheci uma moça encantadora. Tinha cabelos loiros e ondulados, olhos castanhos e bochechas rosadas. Falava suavemente e sorria com timidez. Ela era a mais bela de todas as mulheres que eu tivera a chance de conhecer. E posso dizer que, tendo sido soldado, nunca me faltaram companhias. Cheguei a cortejá-la, mas ela acabou me revelando que estava de compromisso com outro homem e iria se casar em breve. E esse homem, por infortúnio do destino, era o meu irmão.
Eu me sentia substituível e infeliz. Primeiro por estar apaixonado por ela; e depois por saber que nunca a possuiria. Nessa mesma época, a segunda esposa de meu pai ficou muito doente. Nenhum médico conseguia diagnosticar a doença que ela possuía. Sendo assim, não havia como medicá-la. Aconteceu que ela morreu meses depois do casamento de Dorota – a mulher que eu amava – com meu irmão, Vicent.
Como presente de casamento, meu pai lhes deu uma de suas casas. Ficava em Colchester e era uma construção modesta, porém aconchegante: toda branca, com um pequeno jardim de hortênsias próximo à porta de entrada. Aceitaram de bom grado. E meu pai também ofereceu um emprego de contador Vicent, na filial de seu banco instalada na cidade.
As visitas do casal à nossa mansão em Londres eram uma grande tortura. Vê-los felizes e apaixonados me deixava enojado. Cheguei a pensar em fazer propostas sujas – das quais não me orgulho nem um pouco – à esposa de meu próprio irmão, mas ela era uma moça de princípios. Em uma dessas visitas, aconteceu algo que ninguém poderia imaginar. Meu pai, homem honesto, pediu a palavra e começou a falar. Contou que nunca fizera distinção entre mim e Vicent, porque éramos ambos seus filhos.
– Sim, meu pai – argumentei, não tendo entendido onde ele queria chegar com aquela conversa toda – Eu também o considero meu irmão de verdade.
A resposta que ele me deu, jamais poderia ser esquecida.
– Isso acontece, meu filho – aqui ele fez uma pausa – porque Vicent é, de fato, seu irmão de sangue.
Nem que eu vivesse mil anos, seria capaz de explicar a fúria que me consumiu naquele momento. De repente, o homem em quem me espelhei durante toda a minha vida, se revelou uma mentira. Ele era uma farsa, um hipócrita sem escrúpulos e desonrado: eu o odiava. Odiava de uma maneira que beirava a loucura. Não consegui pensar em nada, apenas quebrei boa parte das coisas que estavam naquela sala e depois me tranquei no quarto, corroendo-me de maus pensamentos e sentimentos ruins.
Aquela foi a última vez que meu pai viu a luz do dia. Foi assassinado a facadas no meio da noite. Vicent, sem poder provar que era filho legítimo de Marcus Mason, não tinha direito a nada que vinha de meu pai.
E eu, Phillip Mason, herdei todo o dinheiro. Sozinho. 


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